a crítica de Husserl ao positivismo

04/05/2012 17:05

Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 379-389, jul./dez. 2010

ISSN 0104-4443

Licenciado sob uma Licença Creative Commons

[T]

Fenomenologia e ciências humanas:

a crítica de Husserl ao positivismo

[I]

Phenomenology and human sciences:

Husserl’s criticism to positivism

[A]

Carlos Diógenes Côrtes Tourinho

Professor adjunto de Filoso

 

fi a da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense

(UFF), Niterói, RJ - Brasil, e-mail: cdctourinho@yahoo.com.br

[R]

Resumo

O artigo concentra-se em torno da especi

 

fi cidade da atitude fenomenológica,

bem como da metodologia adotada pela fenomenologia de Edmund

Husserl no começo do século XX. Tal atitude consiste em uma atitude

re

 

fl exiva e analítica, a partir da qual se busca fundamentalmente elucidar,

determinar e distinguir o sentido íntimo das coisas. Já o método

fenomenológico é, por sua vez, um método de evidenciação dos fenômenos,

cuja estratégia consiste no exercício da suspensão de juízo em

relação à posição de existência das coisas, viabilizando a recuperação

destas em sua pura signi

 

fi cação. Contrastando a atitude fenomenológica

com o que Husserl chamou de “atitude natural” (atitude na qual

se encontra mergulhada a consciência das ciências positivas), o artigo

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abordará, em seguida, a crítica da fenomenologia à perspectiva positivista

nas Ciências Humanas.

[P]

Palavras-chave

 

 

: Fenomenologia. Ciências humanas. Edmund Husserl.

Positivismo.

[B]

Abstract

The present paper focuses around the speci

 

fi city of the phenomenological

a

 

tt itude and the methodological strategy adopted by the phenomenology of

Edmund Husserl in the Twentieth Century. Such a

 

tt itude is refl ective and

analitical, from which one seeks to fundamentally elucidate, identify and

distinguish the sense of things. Impelled by the slogan of the “return to the

things itself”, the phenomenology of Husserl adopts, through a methodological

point of view, the call “phenomenological reduction”, that is, the

suspension of the judgement in relation to the natural world, to recover it, in

the consciousness, in an indubitable way, in his pure meaning. Contrasting

the a

 

tt itude phenomenological with what Husserl called “natural att itude”,

the paper addressed then the critique of phenomenology to perspective positivist

in Human Sciences.

[K]

Keywords

 

 

: Phenomenology. Human sciences. Edmund Husserl. Positivism.

O ideal de fundamentação da Filoso

 

fi a como “ciência de rigor”

Pode-se dizer que o projeto

 

fi losófi co anunciado por Husserl sob o

nome de “fenomenologia transcendental” é primordialmente movido e articulado

pela intenção de constituir a Filoso

 

fi a como uma “ciência de rigor”.

O ideal husserliano exprime-se pela determinação em dar uma fundamentação

rigorosa à Filoso

 

fi a e, por meio dela, a todas as demais ciências. Tomado por

sua ânsia de rigor absoluto, por um ímpeto inssaciável de evidenciação que

o acompanhou ao longo de toda a sua vida, Husserl estava convencido de

que a fundamentação da Filoso

 

fi a deveria implicar necessariamente uma plena

racionalidade desta, em uma clari

 

fi cação do sentido íntimo das coisas por

meio de uma autorre

 

fl exão radical (Selbstbesinnung) que daria consistência

racional à própria Filoso

 

fi a. Husserl não se contentaria, a partir de então, com

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coisa alguma que não se revelasse à consciência como um dado absolutamente

evidente (para usar uma expressão sua, que não se revelasse “em pessoa”),

mantendo-se, com isso,

 

fi el ao propósito de garantir não o rigor ao modo das

ciências ditas “positivas” (o rigor do método experimental), mas sim o rigor

absoluto necessário à pretensão de fundamentação do saber

 

fi losófi co a

partir do que é suscetível de ser conhecido de modo originário. Isto porque

a explicação empírica não poderia, apoiada na observação sistematizada e

na descrição da regularidade dos fatos naturais, servir de fundamento último

para este saber. Partia-se, então, da ideia de que para fazer da Filoso

 

fi a uma

ciência rigorosa, para construir uma Filoso

 

fi a livre de todas as divergências,

livre da ameaça de um ceticismo que, segundo Husserl, seria nocivo à própria

Filoso

 

fi a, fazia-se necessário alicerçar a Filosofi a sob bases sólidas, apoiandoa

em evidências absolutas (ou apodíticas), ou seja, em uma “ausência absoluta

de dúvida” (1931, p. 12). De certo modo, fora já este o ideal de Descartes

([1637] 1969) no século XVII: o de não admitir coisa alguma como verdadeira

sem conhecê-la evidentemente como tal (trata-se, na parte II do

 

Discurso do

Método

 

 

, da chamada “regra da evidência”). O fi m e o impulso do projeto fi -

losó

 

fi co husserliano encontram-se, portanto, intimamente determinados pela

fi

 

losofi a cartesiana, o que faz da fenomenologia uma espécie de “herdeira da

modernidade” em pleno século XX. Nos termos de Husserl, “poder-se-ia quase

chamá-la um neo-cartasianismo...” (1931, p. 1). A Filoso

 

fi a é, para Husserl, a

ciência que deve partir de fundamentos últimos ou, o que é o mesmo, de uma

responsabilidade última indissociável de um espírito de radicalismo (como

aquele manifestado nas

 

Meditações cartesianas), de uma “vitalidade primitiva”

cujo ímpeto não perde de vista as evidências últimas, encontrando nelas próprias

a sua justi

 

fi cação absoluta.

Movido por seu projeto

 

fi losófi co de constituir a fi losofi a

como ciência rigorosa, Husserl anuncia-nos explicitamente – em

 

A Ideia da

Fenomenologia

 

 

(Die Idee der Phänomenologie), núcleo das “Cinco Lições”

proferidas em abril-maio de 1907 na Universidade de Göttingen – que, com

a fenomenologia, deparamo-nos com a proposta de uma nova atitude e de um

novo método. A atitude fenomenológica consiste especi

 

fi camente em uma atitude

re

 

fl exiva e analítica, a partir da qual se busca fundamentalmente elucidar,

determinar e distinguir o sentido íntimo das coisas, a coisa em sua “doação

originária”, tal como se mostra à consciência. Trata-se de descrevê-la enquanto

objeto de pensamento. Analisar o seu sentido atualizado no ato de pensar,

explicitando as signi

 

fi cações que se encontram ali virtualmente implicadas,

bem como os seus diferentes modos de aparecimento na própria consciência

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intencional. Explorar a riqueza deste universo de signi

 

fi cações que a coisa –

enquanto um

 

cogitatum – nos revela no ato intencional é o que é próprio da

atitude fenomenológica enquanto um “discernimento re

 

fl exivo” levado a cabo

com rigor. Já o método fenomenológico será, por sua vez, um método de

evidenciação plena dos fenômenos. Também será, para Husserl, o método especi

 

fi

camente

 

fi losófi co, cuja estratégia maior consiste, para o alcance de um

grau máximo de evidência, no exercício da suspensão de juízo em relação à

posição de existência das coisas. Tal exercício viabiliza, assim, a chamada

“redução fenomenológica” e, com ela, a recuperação das coisas em sua pura

signi

 

fi cação, tal como se revelam (ou se mostram), enquanto objetos de pensamento,

na consciência intencional.

Da “Tese do Mundo” à auto-re

 

fl exão da consciência

transcendental

O ponto de partida de Husserl é o que ele próprio de

 

fi niu como sendo

a “tese do mundo”, isto é, a tese segundo a qual o que chamamos de “mundo”

encontra-se aí, diante de nós, tudo isto que, da maneira a mais imediata e direta,

nos é revelado por meio da experiência sensível: as coisas situadas em uma

dimensão espaço-temporal, cada uma das quais com as suas propriedades,

relações, etc. Trata-se do mundo que nos cerca, constituído de entes mundanos,

diante dos quais podemos tomar atitudes variadas, quer nos ocupemos

com eles, quer não. Vivenciamos, portanto, a todo instante, a chamada “tese

do mundo”. Mas, se além da vivência dessa tese, fazemos

 

uso dela, passamos,

então, a exercer o que Husserl chamou de “atitude natural” (

 

natürliche

Einstellung

 

 

). Na atitude natural, atribuo a mim um corpo em meio a outros

corpos e me insiro no mundo por meio da experiência sensível. Admito, em

tal atitude, sem que haja, ao menos, um exame crítico, a existência do mundo

(concebido como “realidade factual”), bem como a possibilidade de conhecêlo

e, com isso, adoto, de certo modo, um “realismo ingênuo”. Neste sentido,

a tarefa crítica da Teoria do Conhecimento de promover uma investigação

acerca do que torna possível a relação de correspondência entre as vivências

cognoscitivas e as coisas a serem conhecidas encontra-se desapercebida na

atitude natural. Dá-se às costas para o chamado “enigma do conhecimento

transcendente”, para o que, classicamente, passou-se a chamar pelo nome de

“problema da correspondência”. A

 

fi nal, o que torna possível tal conhecimento

do mundo? Em que ele se funda? Quais são os seus limites? Dá-se, portanto,

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na atitude natural, a possibilidade do conhecimento do mundo – entendido

como “realidade factual” – como algo certo e inquestionável. Nos termos de

Husserl: “

 

Óbvia é, para o pensamento natural, a possibilidade do conhecimento...

não há nenhum ensejo para lançar a questão da possibilidade do conhecimento

em geral” ([1907] 1997, p. 41). Para Husserl, tanto a consciência

do senso comum quanto a consciência das ciências ditas “positivas” encontram-

se, ainda que de modos distintos, mergulhadas na atitude natural, cujo

exercício expressa a relação entre uma consciência espontânea (empírica ou

psicológica) e o mundo natural, revelado empiricamente para essa consciência

em sua facticidade.

Fiel ao seu projeto

 

fi losófi co de constituição da Filosofi a como uma

“ciência de rigor”, Husserl sabe que as tais evidências apodíticas – necessárias

para a fundamentação da própria Filoso

 

fi a – não poderiam ser extraídas

do plano empírico-natural, pois, por mais perfeita que seja uma percepção

empírica, ela será sempre a percepção de um ponto de vista e, enquanto tal,

somente poderá revelar “aspectos” ou “perspectivas” da coisa percebida

(

 

perceptum) que, por sua vez, não será revelada em sua plenitude, mas apenas

parcialmente. Ainda assim, a crença acerca do que percebemos empiricamente

vai muito além daquilo que a percepção empírica efetivamente nos revela.

Neste sentido, pode-se dizer que a coisa vista empiricamente será sempre

um “misto de visto e não visto”. Portanto, toda evidência extraída do plano

empírico-natural, no qual a consciência empírica se relaciona com as coisas

mundanas, será sempre uma evidência perspectivista (ou existencial), ou seja,

uma evidência parcial. Dos fatos não podemos extrair “evidências absolutas”

(a coisa e o mundo em geral não são apodíticos, pois não excluem a possibilidade

de que duvidemos deles e, portanto, não excluem a possibilidade de sua

não existência). Eis um segundo motivo do por que não podermos, na visão

de Husserl, extrair evidências plenas de nossa percepção empírica do mundo,

pois, a julgar pelo que a experiência sensível nos revela do mundo, nós jamais

poderíamos eliminar, por completo, a possibilidade de duvidar da posição de

existência das coisas que se nos apresentam e, neste sentido, estaríamos sempre

prestes a corrigir as nossas percepções do que havia sido estabelecido com

base na experiência sensível. Tal observação remete-nos para o “argumento do

erro dos sentidos”, equivalente ao primeiro nível da dúvida apresentado por

Descartes em suas

 

Meditações metafísicas, particularmente, em sua “Primeira

meditação” ([1641] 1987, p. 10). Portanto, para Husserl, com base no ente

mundano, seria impossível elaborar uma Filoso

 

fi a que se pudesse apresentar

como ciência rigorosa.

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Husserl opta, então, como estratégia metodológica para o alcance

das evidências apodíticas, pelo exercício da

 

epoché (επογη), isto é, pelo exercício

da “suspensão de juízo” em relação à posição de existência das coisas.

Husserl recupera o conceito de

 

epoché do ceticismo antigo, porém, para pensá-lo

não como um

 

modus vivendi (como um princípio ético a ser praticado como

“hábito virtuoso”) – conforme propunha o ceticismo pirrônico no período

Helênico – mas sim como um recurso metodológico. Com o exercício da

 

epoché,

abstemo-nos de tecer considerações acerca da existência ou não existência

das coisas mundanas. Nos termos de Husserl, promovo a “colocação da atitude

natural entre parênteses”, a facticidade do mundo

 

fi ca “fora de circuito”

([1913] 1950, p. 96). Ao suspender o juízo em relação à facticidade do mundo,

eu não deixo de vivenciar a “tese do mundo”, no entanto, não faço mais

 

uso

dela, procuro mantê-la fora de circuito.

A serviço desta “auto-re

 

fl exão plena, inteira e universal”, a epoché

fenomenológica proporcionará o deslocamento da atenção, inicialmente voltada

para os fatos contingentes do mundo natural, para o domínio de uma

subjetividade transcendental, dentro da qual e a partir da qual os “fenômenos” –

enquanto idealidades puras – se revelarão como “evidências absolutas” para

uma consciência transcendental, dotada da capacidade de ver verdadeiramente

estes fenômenos tal como se apresentam em sua plena evidência. Trata-se, como

o próprio Husserl insiste em ressaltar, de um “puro ver” (

 

reinen Schauen)

das coisas. “

 

A fenomenologia procede elucidando visualmente, determinando

e distinguindo o sentido...

 

 

Mas tudo no puro ver” ([1907] 1997, p. 87). Em

suma, a fenomenologia prescindirá de tecer considerações acerca da posição

de existência das coisas mundanas para direcionar, então, a atenção para os

“fenômenos”, tal como se revelam (ou como se mostram), em sua pureza irrefutável,

na autorre

 

fl exão da consciência transcendental.

Portanto, para Husserl, é como se houvessem “duas regiões” da relação

entre o mundo e eu, reveladas a partir de dois modos distintos de consideração

do mundo. De um lado, deparamo-nos com um modo de consideração

das coisas, a partir do qual o mundo se revela para a nossa consciência empírica

como o domínio empírico-natural dos fatos, do que se encontra submetido

a uma dimensão espaço-temporal. Trata-se do modo de consideração

do mundo próprio das ciências positivas em geral. Paralelamente, como um

recurso metodológico para o alcance das evidências apodíticas, o exercício

da

 

epoché e, consequentemente, da redução fenomenológica, promoverá o

salto para o modo de consideração transcendental (ou fenomenológico) das

coisas, fazendo agora com que o mundo se revele,

 

na e para a consciência

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pura (ou transcendental), como um “horizonte de sentidos”, como domínio

das idealidades inteligíveis. “Puro” aqui signi

 

fi ca “não mundano”, ou melhor,

“não factual”, aquilo que não pode ser pensado em termos de dados empíricos.

Se esta consciência pura não pode ser tomada a partir de dados empíricos (ou

psicológicos), cabe-nos apenas concebê-la a partir de sua relação intencional

com o seu objeto que, em sua versão reduzida, enquanto um objeto de pensamento,

nada mais é do que um conteúdo intencional da consciência. Trata-se,

com tal redução, de fazer o mundo reaparecer na consciência como um horizonte

de idealidades meramente signi

 

fi cativas, que se revelam como um dado

absoluto e imediato para uma tal consciência pura que o apreende e o constitui

intuitivamente. A mesma consciência que intuitivamente apreende o objeto

em sua versão reduzida, isto é, como “fenômeno puro”, é também responsável

pela constituição desse mesmo objeto, agora atualizado no pensamento como

uma unidade de sentido. O objeto, precisamente porque inconcebível sem ser

pensado, enquanto um

 

cogitatum, exige uma doação de sentido que só pode

vir a partir dos atos intencionais da consciência, isto é, as unidades de sentido

pressupõem uma consciência doadora de sentido (

 

sinngebendes). Portanto,

deparamo-nos com duas atitudes – a “atitude natural” e a “atitude fenomenológica”

– das quais decorrem dois modos distintos de consideração das coisas:

se no primeiro modo de consideração, o mundo nos é revelado em sua facticidade,

no segundo modo, o mundo se revela, na consciência transcendental,

em sua pura signi

 

fi cação, o que é o mesmo que dizer que o mundo se revela,

em sua totalidade, como “fenômeno”.

A fenomenologia transcendental será, então, uma fenomenologia da

consciência constituinte. Exercer a

 

epoché é reduzir à consciência transcendental.

Tal redução do objeto à consciência transcendental, na medida em que

não desfaz a relação entre sujeito e objeto, antes, sim, revela uma dimensão

nova dessa relação, impede que a verdadeira e autêntica objetividade desapareça.

O famoso lema dos fenomenólogos de “retornar às coisas mesmas” (

 

zu

den Sachen selbst

 

 

) deve, então, em Husserl, ser entendido da seguinte forma:

a coisa para a qual retornamos não deve aqui ser tomada como um “fato” do

mundo natural, mas sim como a “coisa mesma”, enquanto objeto de pensamento

(enquanto

 

cogitatum), recuperada, por meio da redução fenomenológica,

em sua dimensão originária, em seu caráter inteiramente primordial: a

coisa sobre a qual falamos, sobre a qual pensamos, a coisa intencionada no

pensamento, revelada por meio de diferentes modalidades do aparecer enquanto

tal (como objeto de um juízo, de uma lembrança, de um desejo, e assim

por diante).

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A crítica da fenomenologia às ciências positivas

Portanto, quando pensamos a crítica da fenomenologia às ciências

positivas, pensamos, então, em dois modos de consideração distintos acerca do

mundo. Tal crítica faz-se notar, particularmente, quando pensamos a relação

da fenomenologia com as ciências humanas. No volume da coleção enciclopédica

Que sais-je?

 

 

, intitulado La Phénoménologie (1954), o fi lósofo francês

Jean-François Lyotard promove articulações da fenomenologia com as ciências

humanas, chamando-nos a atenção para as possíveis in

 

fl uências exercidas

pelas teses de Husserl, bem como para os impactos produzidos por tais teses

sobre os campos da Psicologia, da Sociologia e da História. Consideremos o

capítulo reservado às relações entre a fenomenologia e a Sociologia. Nele,

Lyotard chama-nos a atenção para a crítica de Husserl ao programa positivista

adotado por certas correntes em Sociologia e, por conseguinte, para a insu

 

fi ciência

do método indutivo aceito por tais correntes. Como nos lembra Lyotard

([1954] 2004), para Husserl, não podemos inferir, como pretendem as correntes

positivistas, uma lei geral a partir da observação de casos particulares e da

constatação de sua regularidade. Com a fenomenologia, deparamo-nos, de

antemão, com uma

 

eidética (isto é, com uma “doutrina de essências”). Para

Husserl, não há ciência que não comece por estabelecer um quadro de essências

obtidas pela técnica de variação imaginária dos objetos. A “essência” deve ser

entendida em Husserl não como uma “forma pura” que subsiste por si mesma,

independentemente do modo como mostra-se à consciência intencional, mas

sim como aquilo que é retido no ato intencional desta consciência por meio da

redução fenomenológica. Pode-se entender esta essência como aquilo que é

retido no pensamento pela técnica de variação imaginária dos objetos: atenhome,

ao exercer a redução fenomenológica, ao núcleo invariante da coisa, isto

é, ao que persiste na coisa pensada mesmo diante de todas as variações a

que eu a submeto em minha imaginação. A variação arbitrária de um objeto

qualquer na imaginação permite-nos notar que tal arbitrariedade não pode ser

completa, uma vez que há condições sem as quais as “variações” deixam de

ser variações

 

daquilo que é intencionado no pensamento. Tal “núcleo invariante”

do

 

cogitatum defi ne precisamente a essência daquilo que se mostra na e para

a

 

 

consciência intencional, revelando-se, portanto, em sua dimensão originária.

Portanto, para Lyotard ([1954] 2004), em uma abordagem fenomenológica

da sociologia, se quisermos estudar a existência de uma instituição

em um determinado grupo social, sua gênese histórica e o seu papel atual na

sociedade, faz-se necessário de

 

fi nir primeiramente o que seja esta instituição.

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Pelo exercício da redução fenomenológica, retemos no pensamento o que é

intencionado enquanto “fenômeno”, enquanto uma idealidade meramente signi

 

fi

cativa dotada de uma unidade objetiva, sobre a qual incide a análise fenomenológica,

a partir da qual se procura explicitar as diferentes signi

 

fi cações

implicadas na coisa intencionada, bem como as diferentes modalidades de

aparecimento desta coisa na consciência que a intenciona.

Como nos lembra Lyotard, a sociologia de Durkheim assimila, por

exemplo, a vida religiosa à experiência do sagrado, a

 

fi rmando-nos que o sagrado

tem a sua origem no totemismo, cuja origem resulta, por sua vez, de

uma sublimação do social. Segundo Lyotard ([1954] 2004), no entanto, é exatamente

neste ponto que uma visada fenomenológica da sociologia promoveria

os seguintes questionamentos: a experiência do sagrado constitui a essência

da vida religiosa? Não seria possível conceber (por variações imaginárias)

uma religião que não se apoiasse sobre esta prática do sagrado? En

 

fi m, o que

signi

 

fi ca o “sagrado” propriamente dito? Em vez de inferir leis gerais a partir

da observação de casos particulares e da descrição da regularidade desses casos,

conforme propõe, do ponto de vista metodológico, o programa positivista de

Augusto Comte, a atitude fenomenológica concentra-se – em um processo

inverso àquele adotado pelas ciências positivas – na descrição (ou análise)

de essências. Nos termos de Husserl, trata-se, com a atitude fenomenológica,

de um processo dinâmico, de uma atitude re

 

fl exiva e analítica, cujo intuito

central passa a ser o de promover a elucidação do sentido originário que a

coisa expressa, em sua versão reduzida, independentemente da sua posição de

existência. Em tal atitude, certamente, a estratégia metodológica adotada pela

fenomenologia assumiria um papel decisivo, enquanto método de evidenciação

plena dos fenômenos.

O convite da fenomenologia às ciências humanas

A título de conclusão, engana-se aquele que pensa que, com a estratégia

metodológica adotada pela fenomenologia, Husserl estaria negando a

existência do mundo. Antes sim, estaria renunciando a um modo ingênuo de

consideração desse, para viabilizar, com o exercício da redução fenomenológica,

o acesso a um modo de consideração transcendental do mundo. Em sua

versão reduzida, o mundo se abriria, então, enquanto campo fenomenal,

 

na e

para a

 

 

consciência intencional como um “horizonte de sentidos”. Sem negar

a existência do mundo factual, renunciamos, pela

 

epoché, à ingenuidade da

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atitude natural, para reter, então, a “alma do mundo”, o mundo na sua pura

signi

 

fi cação, a “coisa mesma” (a coisa percebida, sobre a qual pensamos, sobre a

qual falamos) recuperada na consciência intencional enquanto “objeto de pensamento”.

A radicalização da

 

epoché vem promover o exercício da suspensão

de juízo não apenas em relação à posição de existência dos fatos que transcendem

a consciência empírica, mas também em relação à posição de existência

do eu empírico (o homem enquanto ente psicofísico, objeto de estudo da ciência

psicológica), bem como em relação às vivências deste eu.

Em tal sentido, coloca-se “entre parênteses” a objetividade empíriconatural

própria das ciências positivas. A redução fenomenológica faz reaparecer,

na própria consciência intencional, a verdadeira objetividade pela qual o

objeto intencionado é, enquanto conteúdo intencional do pensamento, constituído

e apreendido intuitivamente. Daí o próprio Husserl dizer, em

 

Ideias

diretrizes para uma Fenomenologia

 

 

(1913), que se por “positivismo” entendemos

o esforço de fundar as ciências sobre o que é suscetível de ser conhecido

de modo originário, nós é quem somos os verdadeiros positivistas ([1913]

1950, p. 69)! Se as ciências positivas não deixam de conceber a relação entre

subjetivo e objetivo em termos da dicotomia “interioridade”/“exterioridade”,

assentindo o objetivo como algo que nos remete sempre para um exterior, para

o que transcende a própria consciência empírica (ou psicológica), a redução

fenomenológica permite-nos, ao nos lançar para o modo transcendental de

consideração do mundo, recuperar a autêntica objetividade na própria subjetividade

transcendental – domínio último e apoditicamente certo sobre o qual

deve ser fundada toda e qualquer

 

fi losofi a radical – unindo, com isso, o objetivo

e o subjetivo. Trata-se, nos termos de Husserl, em suas

 

Conferências de

Paris

 

 

, em 1929, de “uma exterioridade objetiva na pura interioridade” ([1929]

1992, p. 11). Apesar da imanência, o objeto intencionado não perde, em sua

versão reduzida, a sua

 

alteridade. O objeto visado se revela, em sua versão

reduzida,

 

na e para a consciência intencional. Ainda assim, o objeto não se

confunde com ela. Portanto, as coisas intencionadas, apesar de não serem os

atos de pensamento, constituem-se contudo nesses atos, tornando-se presentes

neles mesmos (HUSSERL, [1907] 1997).

A

 

fi nal, o método fenomenológico desloca-nos a atenção para o domínio

de uma autêntica objetividade, imanente à própria consciência intencional.

Portanto, se a adoção do programa positivista nas ciências humanas

deixa-nos, para o estudo do homem, con

 

fi nados a uma lógica indutiva e probabilística,

segundo a qual conhecer consiste em descrever, pela observação

positiva dos fatos, a regularidade desses fatos, o método fenomenológico nas

Fenomenologia e ciências humanas

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ciências humanas convida-nos a uma atitude re

 

fl exiva e analítica acerca do

sentido íntimo da coisa – tanto aquele que se atualiza no pensamento quanto as

signi

 

fi cações que se encontram virtualmente ali presentes. Convida-nos, portanto,

para uma clari

 

fi cação do que há de mais originário na coisa sobre a qual

retornamos. Eis o convite genuíno da fenomenologia às ciências humanas.

Referências

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LYOTARD, J-F.

 

La phénoménologie. Que sais-je? Paris: PUF, [1954] 2004.

Recebido: 02/08/2010

Received

 

 

: 08/02/2010

Aprovado: 10/09/2010

Approved

 

 

: 09/10/2010

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