O QUE É ISTO — A FENOMENOLOGIA DE

04/05/2012 16:58

Dante Augusto Galeffi 13

O QUE É ISTO — A FENOMENOLOGIA DE

HUSSERL?

Dante Augusto Galeffi

Professor Adjunto do Departamento II da FACED - UFBA

Doutor em Educação - UFBA

dgaleff@uol.com.br

RESUMO:

 

Trata-se de uma leitura da concepção fenomenológica

de Husserl, um exercício de compreensão do alcance do que ele

propõe como Filosofia Transcendental. A visada é interrogante

e perplexiva, em momento algum conclusiva. Procura-se pensar

com Husserl e não contra ele. Releva-se, assim, o campo positivo

da aquisição da atitude fenomenológica, no sentido do

fundamento de uma ciência do homem e para o homem, na

abertura de suas possibilidades livres e responsavelmente determinadas.

PALAVRAS-CHAVE:

 

Filosofia Transcendental, Fenomenologia,

Consciência Constituinte.

ABSTRACT:

 

This is a reading of Husserl’s phenomenology

conception, a comprehension exercise of significance on what

he proposes as Transcendental Philosophy. This focus is something

interrogative and perplexed, never against him. So that, it’s

emphasized the positive zone of acquisition of phenomenological

attitude, in the meaning of science reason of human being, in

the opening of his free and determined responsable possibilities.

KEY-WORDS:

 

Transcendental Philosophy, Fenomenology,

Constituent Consciousness.

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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Com a pergunta,

o que é isto — a fenomenologia?, somos

convidados a tomar parte em um jogo que tem como fim a

elucidação da verdade fenomenológica. Mas, podemos nós

esclarecer o sentido e o significado do que venha a ser uma

“verdade elucidada fenomenologicamente”? Sabemos nós, de

modo claro, o que é isto — a fenomenologia? Sabemos a sua

origem, o seu meio, o seu fim? E se algo sabemos, o que somos

capazes de dizer sobre sua gênese, seu processo, seu projeto,

e sobre qual “ponto de vista” gnosiológico a compreendemos?

Desde o início, a pergunta pela fenomenologia guia os

nossos passos, enfatizando a necessidade de um procedimento

de rigor para a apresentação da questão. Um tal procedimento

diz respeito à própria

fenomenologia compreendida como método

da crítica do conhecimento universal das essências,

 

segundo

Edmund Husserl (1859-1938), método que é a própria

ciência

da essência do conhecimento

 

, ou doutrina universal

das essências

 

. (Husserl, 1990: 22)

Segundo essa breve definição, a

fenomenologia é um

método,

 

o que significa dizer que ela é o “caminho” da crítica

do conhecimento universal das essências. Assim, para Husserl,

a fenomenologia é o "caminho” (método) que tem por “meta”

a constituição da ciência da essência do conhecimento ou

doutrina universal das essências. Mas, o que isto significa —

uma doutrina universal das essências — e qual é a sua serventia?

De imediato, a pergunta sobre a fenomenologia está sendo

feita a Edmund Husserl. Em outras palavras, colocamos-nos

no “caminho” da Fenomenologia por ele concebida, a partir da

leitura e esforço de interpretação da sua obra

A Idéia da Fenomenologia,

texto resultante de

Cinco Lições proferidas em Gotinga, no período

de 26 de abril a 2 de maio de 1907. Esse texto já apresenta

a perspectiva madura da Fenomenologia de Husserl, o momento

em que ele decide por uma “crítica da razão” (em todas as suas

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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dimensões), configurando, assim, uma “nova Fenomenologia

Transcendental” (ou pelo menos uma renovação-continuação

da

atitude radical), o que nos permite ir direto ao assunto, i. é,

falar da Fenomenologia segundo a visada inovadora do seu

inventor.

De acordo com o próprio rigor da atitude filosófica, portanto,

de acordo com a interrogação sistemática que analisa as

condições, os limites e as possibilidades de um conhecimento

das

coisas mesmas, a nossa atitude frente às idéias de Husserl

procura ser a mais radical possível, o que põe em jogo um

esclarecimento “para nós mesmos” do alcance e do significado

essencial de uma investigação fenomenológica.

Nesse sentido, permanecemos na pergunta:

Que é Fenomenologia?

A pergunta nos lança em um “caminho” que interroga a própria

“razão constituinte”; a pergunta institui a “crítica da razão”:

a

ciência da essência do conhecimento

 

, ou melhor, a Fenomenologia

Transcendental.

Assim, perguntar pela fenomenologia significa percorrer

um caminho de “crítica da razão fenomenológica”, ou seja,

crítica da ciência do conhecimento

a priori, o conhecimento

transcendental (puro). Mas, uma vez admitida esta definição,

qual seria a diferença entre a Fenomenologia de Husserl e a

Filosofia Transcendental de Kant?

O texto sobre o qual exercitamos esta compreensão inicial

e provisória de “fenomenologia” —

A Idéia da Fenomenologia —

apresenta, como dissemos, as principais teses que deram início

à fase

transcendental da filosofia de Husserl, precisamente aquela

do

método fenomenológico que tanto influiu nos mais

importantes movimentos do pensamento do século XX. Através

das

Cinco Lições que deram origem ao texto em questão, Husserl

expõe os fundamentos de uma

Crítica da Razão, ao modo

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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kantiano, o que dificulta qualquer pretensão de se poder encontrar

diferenças essenciais entre os dois fenomenólogos, sobretudo

em relação à idéia básica da «constituição» do conhecimento

crítico — conhecimento puro

a priori.

Desde 1907, Husserl começa a assumir uma nova posição

gnosiológica, tomando distância de uma “fenomenologia psicológica

descritiva”, concernente à simples esfera das vivências,

e isto segundo o conteúdo incluso de tais “vivências”, ou seja,

segundo as vivências do “eu que vive”, referindo-se empiricamente,

assim, às “objetividades da natureza”. Para ele, agora importava

distinguir essa forma de “fenomenologia empírica” da

fenomenologia transcendental

 

.

Essa passagem de uma fenomenologia empírica para uma

fenomenologia transcendental vai firmar a nova posição de

Husserl em relação as suas

Investigações Lógicas (1900-1901). Em

um manuscrito de setembro de 1907 (B II 1), ele apresenta os

motivos e as intenções dessa mudança:

« As “Investigações Lógicas” fazem passar a fenomenologia

por

psicologia descritiva (embora fosse nelas determinante o

interesse teórico-cognoscitivo). Importa, porém, distinguir esta

psicologia descritiva, e, claro, entendida como fenomenologia

empírica da

fenomenologia transcendental...

O que nas minhas “Investigações Lógicas” se designava

como fenomenologia psicológica descritiva concerne à simples

esfera das vivências, segundo o seu conteúdo incluso. As

vivências são vivências do eu que vive, e nessa medida referemse

empiricamente às objetividades da natureza. Mas, para uma

fenomenologia que pretende ser gnosiológica, para uma doutrina

da essência do conhecimento (

a priori), fica desligada a

referência empírica. Surge, assim, uma

fenomenologia transcendental

que foi efetivamente aquela que se expôs em fragmentos nas

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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“Investigações Lógicas”.

Nesta fenomenologia transcendental não nos havemos com

ontologia apriórica, nem com lógica formal e matemática formal,

nem com geometria como doutrina apriórica do espaço,

nem com cromometria e foronomia apriórica, nem com ontologia

real apriórica de qualquer espécie (coisa, mudança, etc.).

A fenomenologia transcendental é fenomenologia da

consciência

constituinte

 

e, portanto, não lhe pertence sequer um único

axioma objetivo (referente a objetos que não são consciência...).

O interesse gnosiológico, transcendental, não se dirige ao

ser objetivo e ao estabelecimento de verdades para o ser objetivo,

nem, por conseguinte, para a ciência objetiva. O elemento

objetivo pertence justamente às ciências objetivas, e é afazer

delas e exclusivamente delas apenas alcançar o que aqui falta

em perfeição à ciência objetiva. O interesse transcendental, o

interesse da

fenomenologia transcendental dirige-se para a consciência,

enquanto consciência, vai somente para os

fenômenos,

fenômenos em duplo sentido: 1) no sentido da aparência

(

Erscheinung) em que a objetividade aparece; 2) por outro lado,

no sentido da objetividade (

Objektität) tão só considerada, enquanto

justamente aparece nas aparências e, claro está,

«transcendentalmente», na desconexão de todas as posições

empíricas...

Dilucidar estes nexos entre

verdadeiro ser e conhecer e, deste

modo, investigar em geral as correlações entre acto, significação

e objeto, é a tarefa da fenomenologia transcendental (ou da

filosofia transcendental)». (Husserl, 1990: 13-14)

Essas observações de Husserl não deixam dúvida do que ele

está chamando de

fenomenologia transcendental. E é nessa ótica

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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que aqui tratamos de interrogar a

Fenomenologia. Portanto,

a

fenomenologia da qual discorremos é uma gnosiologia da consciência,

enquanto consciência

 

; uma Filosofia Transcendental, isto é,

uma Crítica da Razão, enquanto

fenômeno da consciência constituinte.

Neste sentido, desde 1907, a Fenomenologia de Husserl

já se aproxima do formato de um

idealismo transcendental, fato

que se consolida, em 1913, com a publicação de

Idéias para uma

Fenomenologia Pura

 

.

Entretanto, para que se tenha presente a grande dificuldade

e o esforço depreendido, necessário para que Husserl pudesse

formular uma “nova fenomenologia”, citaremos algumas passagens

de anotações feitas em seu diário, em 25/11/1906, em que

fica claro o grande desafio e a grande decisão tomada por ele,

de modo a justificar a sua própria prática filosófica como tarefa

radical:

«Em primeiro lugar, menciono a tarefa geral que tenho de

resolver para mim mesmo, se é que pretendo chamar-me filósofo.

Refiro-me a uma

crítica da razão. Uma crítica da razão

lógica, da razão prática e da razão valorativa em geral. Sem

clarificar, em traços gerais, o sentido, a essência, os métodos,

os pontos de vista capitais de uma ciência da razão; sem dela

ter pensado, esboçado, estabelecido e demonstrado um projeto

geral, não posso verdadeiramente e sinceramente viver. Os

tormentos da obscuridade, da dúvida, que vacila de um para o

outro lado, já bastante os provei. Tenho de chegar a uma íntima

firmeza. Sei que se trata de algo grande e imenso; sei que grandes

gênios aí fracassaram; e, se quisesse com eles comparar-me,

deveria de antemão desesperar...» (Husserl, 1990: 12)

Como se pode ver e ouvir, a elucidação fenomenológica do

conhecimento era uma questão de “vida ou morte” para Husserl.

Desesperadamente, ele também buscava a “certeza certa”, o

fundamento sólido de uma clarificante “crítica da razão”. Em

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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outras palavras, Husserl acreditava na edificação de uma

ciência

transcendental dos fenômenos da consciência enquanto consciência

 

, tomando

distância do ceticismo reinante no ambiente intelectual

da sua época.

Diante da “crise da razão gnosiológica” do seu tempo, que

vinha solapando qualquer pretensão de se dar seguimento a uma

ciência da “constituição” do conhecimento puro (

a priori),

Husserl restaura a

atitude transcendental como “retorno às coisas

mesmas”, provocando, assim, profundas mudanças no horizonte

teórico do fazer filosófico do século XX. Reclamando,

renovadamente, uma nova tarefa para a Filosofia do Sujeito,

precisamente aquela capaz de superar o amadorismo empírico

ou o transcendentalismo ingênuo (ou realista) das épocas anteriores,

Husserl projeta para a Filosofia a possibilidade de

desfazer-se dos “tormentos da obscuridade”, e isto através do

método fenomenológico

 

(ou redução fenomenológica) levado

às suas extremas consequências, a saber:

o retorno à consciência.

Segundo Husserl, a chamada

redução fenomenológica proporciona

o acesso ao “modo de consideração transcendental”, ou

seja, o “retorno à «consciência»”. Assim, através da “redução

fenomenológica” os objetos se revelam na sua constituição.

Retornando à «consciência», os objetos aparecem na sua

constituição, ou seja, como correlatos da consciência. O retorno,

portanto, permite «dissolver o ser na consciência», isto é,

permite que o ser (ou ente, ou melhor, o “ser do ente”) se torne

«consciência».

O «retorno à consciência», eis a pedra fundamental da

Fenomenologia de Husserl. Mas, em que sentido devemos

entender “este retorno à consciência”? O que é que Husserl

entende por «consciência»? E em que medida a sua “definição”

fenomenológica é capaz de alcançar a essência da ciência dos

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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fenômenos da consciência?

No caso, esse «retorno» pressupõe a «redução fenomenológica».

Trata-se, portanto, de um pôr-se no caminho das próprias coisas,

isto é, de “retornar” a elas. Neste sentido, a “redução” se

confundiria com o próprio método fenomenológico, pois seria

um “caminho” para se alcançar e clarificar filosoficamente a

essência universal do conhecimento absoluto. Entretanto, na

“atitude fenomenológica” a “atitude natural” é posta em questão,

o que significa o exercício crítico do próprio conhecimento.

Assim, uma das grandes tarefas da “redução fenomenológica”

é a superação do próprio horizonte do “conhecimento natural”,

o que implica no aparecimento de complexas tensões e obscuros

problemas gnosiológicos.

Nessa visada, a tarefa da

Fenomenologia Transcendental seria

justamente a de preparar o terreno para o aparecimento de uma

compreensão mais apurada (e menos turbulenta) dos atos intencionais

que constituem a consciência, e isto de tal modo a se

poder instituir um conhecimento filosófico independente do

conhecimento produzido pelas ciências da natureza. Trata-se,

no caso, de um

projeto transcendental capaz de validar uma autêntica

ciência filosófica, ciência ocupada com a “crítica da própria

consciência”, que se impõe a tarefa de esclarecer cada vez mais

e melhor a própria consciência dos objetos na sua constituição

fenomenal.

Como se vê, a tarefa que Husserl se impõe a levar adiante

possui uma grandeza extraordinária. Simplesmente ela se põe no

caminho da “crítica da razão” capaz de liberar o fluxo do próprio

“retorno à consciência”. Deste modo, ao provocar o retorno

radical à «consciência pura», a “redução fenomenológica” institui

a suspeição de todos os dados da consciência empírica

(consciência psicológica, existencial, ôntica), e isto de tal forma

que a própria consciência supere a sua identificação com o

Ideação,

 

 

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conhecimento natural,

 

mostrando-se como consciência de coisas,

de fatos, de ideações, de afetos, etc., podendo, assim, ser

rigorosamente investigada na sua «constituição», ou melhor, no

modo como constitui os objetos e é constituída por eles, segundo

uma indissolúvel relação dialética.

Nessa visada, a diferença entre “conhecimento natural” e

“conhecimento filosófico” se dá como consequência da “dúvida”

interrogante. Trata-se de uma saída do curso natural dos

acontecimentos por meio da construção de um “conhecimento

transcendental”, isto é, um conhecimento capaz de pôr em

suspeição o seu próprio modo de conhecer. Portanto, um conhecimento

capaz de duvidar de si mesmo e de tornar-se o lugar de

alcance das formas

a priori da sua constituição, através da

“suspensão” de todos os dados empíricos que, então, se mostram

fenômenos da consciência, mas não a própria consciência.

Pela “redução fenomenológica” retorna-se à própria consciência.

E a consciência se mostra

consciência de objetos constituídos

no próprio ato cognoscente

 

. Deste modo, o retorno à «consciência» é

o mesmo que o

retorno às próprias coisas, retorno que permite,

segundo Husserl, a construção de uma

ciência da essência do

conhecimento

 

. Assim, se o conhecimento é sempre “conhecimento

de coisas”, ele será sempre um «conhecer» de acontecimentos

conscientemente dados. Ora, se a consciência é

igualmente “consciência de...”, como pode ela ser concebida

fora do seu acontecimento fenomenal, ou melhor, como pode

ela transcender a esfera psicológica do chamado “sujeito concreto”?

De modo inequívoco, a fenomenologia pregada por Husserl

procura tomar distância da dúvida em relação à possibilidade

de uma

ciência absoluta, ou melhor, de uma ciência universal

das essências

 

, uma ciência transcendental, portanto, ocupada

em dilucidar os vários aspectos, níveis e graus da constitui

Ideação,

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ção da consciência dos objetos, isto é, da razão nas suas mais

diversas modalidades.

Entretanto, a Fenomenologia Transcendental não pode ser

confundida com um sistema de pensamento acabado, no qual

todas as leis e princípios do mundo e da consciência encontrariam

uma resposta imediata e imutável. Pelo contrário, a

questão fenomenológica ,levantada por Husserl, procura tomar

distância da pretensão de explicar as “essências”, segundo um

determinado modelo generalizador, baseado em intuições intelectuais

fundadas na aporia entre

imanente e transcendente. Segundo

esta concepção ingênua e determinista, o

imanente pertenceria

à esfera da subjetividade (seria, no caso, “interior ao

sujeito”), e o

transcendente seria tudo aquilo que “ultrapassa” a

subjetividade, tudo aquilo que é “exterior ao sujeito”. Ora, uma

tal concepção não se sustenta diante de uma “crítica da razão”

rigorosamente exercitada.

Como afirma Husserl, no estágio inicial da consideração

sobre o conhecimento, o estágio da ingenuidade, tudo se passa

em uma captação direta das coisas e dos nexos. Aqui a evidência

confunde-se com o simples ver, o olhar do espírito desprovido

de essência, em todos os casos um só e o mesmo e em si

indiferenciado: o ver divisa simplesmente as coisas; as coisas

simplesmente existem e, no intuir verdadeiramente evidente,

existem na consciência, e o ver centra-se simplesmente nelas.

No caso, tratar-se-ia de uma captação direta, em que o pegar

ou apontar para algo significa uma ação sobre algo que já se

encontra “aí”, já está evidentemente dado. Assim, toda diferença

“está”, pois, nas próprias coisas, segundo suas diferentes

ipseidades (identidades). (Husserl, 1990: 32)

Entretanto, deixando-se de lado essa atitude natural, uma

análise mais precisa acaba revelando a enorme problematicidade

do ver as coisas. Como elucida Husserl:

Ideação,

 

 

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Se bem que se conserve sob o nome de “atenção” o olhar

em si indescritível e indiferenciado, mostra-se, porém, que

efetivamente não tem sentido algum falar de coisas que simplesmente

existem e apenas precisam de ser vistas; mas que esse

«meramente existir» são certas vivências da estrutura específica

e mutável; que existem a percepção, a fantasia, a recordação,

a predicação, etc., e que as coisas não estão nelas como num

invólucro ou num recipiente, mas se

constituem nelas as coisas,

as quais não podem de modo algum encontrar-se como ingredientes

naquelas vivências. O «estar dado das coisas» é

exibirse

(ser representadas) de tal e tal modo em tais fenômenos. E

aí as coisas não existem para si mesmas e «enviam para dentro

da consciência» os seus representantes. Algo deste gênero não

nos pode ocorrer no interior da esfera da redução fenomenológica,

mas as coisas são e estão dadas em si mesmas no fenômeno

(

Erscheinung) e em virtude do fenômeno; são ou valem, claro

está, como individualmente separáveis do fenômeno, na medida

em que não importa este fenômeno singular (a consciência de

estar dadas), mas, essencialmente são dele inseparáveis.

Mostra-se, pois, por toda a parte, esta admirável correlação

entre

fenômeno do conhecimento e o objeto de conhecimento. (Husserl,

1990: 32-33)

Tudo isso nos mostra o quanto é árdua e complicada a tarefa

da Fenomenologia Transcendental de Husserl, fato atestado por

suas próprias palavras:

Advertimos agora que a tarefa da fenomenologia,

ou antes, o campo das suas tarefas e investigações, não é uma coisa tão

trivial como se apenas houvesse que olhar, simplesmente abrir os olhos.

(Husserl, 1990:33)

Estamos diante de uma “tarefa” que toma distância da

“atitude natural” (ingênua) e instaura uma “atitude filosófica”

(problemática). Como vimos, na “atitude natural” a dicotomia

entre o que é

imanente e o que é transcendente se mostra como

Ideação,

 

 

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imediatamente evidente para o conhecimento. Deste modo, o

próprio conhecimento não é nunca analisado, segundo a sua

própria

estrutura fenomenal, o que impede o desenvolvimento

de uma investigação crítica sobre as condições essenciais em

que se dá o conhecer fenomênico. Neste sentido, a tarefa da

Fenomenologia Transcendental seria a de tornar evidente, por

meio do esforço elucidativo da

estrutura fenomenal da consciência,

o próprio modo de ser dos objetos que constituem a

consciência humana

 

.

Assim, a tarefa da Fenomenologia seria a de

rastrear todas

as formas do dar-se e todas as correlações

 

, e isto dentro do âmbito

da própria evidência pura do dar-se em si mesmo (

Selbstgegebenheit),

exercendo, sobre todas elas, a análise esclarecedora da própria

estrutura dos fenômenos da consciência

 

. No caso, a análise

fenomenológica procura abarcar não apenas os atos da consciência

dos objetos, como também os seus nexos e correlatos, e

isto segundo uma compreensão unívoca da estrutura do fenômeno.

Nesta medida, o “fenômeno”, enquanto “dar-se em si

mesmo”, é algo incontestável. Entretanto, no dar-se não está

inclusa a “análise esclarecedora” que a fenomenologia toma

como tarefa. Em outras palavras, isto significa que a simples

percepção consciente de um dado fenômeno não pressupõe a

análise dos seus “atos” e “correlatos”, suas “complexões” e os

seus “nexos” (discordantes ou concordantes), suas “teleologias”

e “configurações”.

Portanto, a tarefa da

Fenomenologia Transcendental é a de

elucidar e rastrear gradualmente todos os possíveis dados da

consciência, segundo as suas modalidades e possíveis modificações

de comportamento. Trata-se da construção de uma

ciência das essências,

 

construção edificada “passo a passo”;

uma

ciência das essências capaz de “descrever” a estrutura

dos fenômenos da consciência; uma

ciência dos fenômenos

cognoscitivos

 

em duplo sentido:

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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Ciência dos conhecimentos como fenômenos (

Erscheinungen),

manifestações, atos da consciência em que se exibem, se tornam

conscientes, passiva ou ativamente, estas e aquelas objetividades;

e, por outro lado, ciência destas objetividades enquanto a

si mesmas se exibem deste modo. (Husserl, 1990: 34-35)

Fenomenologia

 

, o nome denuncia tratar-se de uma “ciência

do fenômeno”. Entretanto, como haveremos de compreender

o sentido fenomenológico da palavra “fenômeno”?

‘Fenômeno’, do grego

phainómenon, significa “aquilo que

aparece”. A palavra deriva do verbo grego

phainomenai: “eu

apareço”. O que “aparece” é aquilo que se mostra à luz, o

“brilhante” (

phaino).

Entretanto, apesar da palavra “fenômeno” designar

o que

aparece

 

, ela é usada preferencialmente para designar o próprio

aparecer

 

, isto é, o fenômeno da consciência ou, usando o que Husserl

considerava uma “expressão grosseiramente psicológica”,

o

fenômeno subjetivo

 

. Em virtude deste uso ambíguo, a palavra

“fenômeno” favorece a formação de equívocos, pois o próprio

aparecer

 

torna-se objeto de investigação, ou seja, o próprio

sujeito do conhecimento é investigado na sua estrutura de

comportamento, em virtude da correlação essencial entre

o seu

aparecer

 

e o que aparece. Trata-se, no caso, de uma relação

interdependente entre

o aparecer e o que aparece, entre o sujeito do

conhecimento

 

e o mundo conhecido, entre a consciência que conhece e

o

mundo ou objeto que aparece ou se mostra cognoscível.

Nesse sentido, a palavra “fenômeno” é para a fenomenologia

algo que compreende, simultaneamente, tanto

o aparecer quanto

aquilo que aparece

 

: a relação indissociável entre o sujeito e o mundo,

a

consciência e seus objetos.

A fenomenologia, portanto, ocupa-se do “fenômeno” em

duplo sentido: na sua estrutura e no seu aspecto (aparência). E

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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esta ocupação se refere exclusivamente, como ensina Heidegger,

ao modo

como se de-monstra e se trata o que nesta ciência deve

ser tratado. Como ciência dos “fenômenos”, a fenomenologia

apreende os objetos

de tal maneira que acaba por tratar de tudo

que se põe em discussão, segundo uma de-monstração e procedimento

diretos. (Heidegger, 1988: 64)

Como se vê, há um conceito fenomenológico de “fenômeno”

operado pela fenomenologia. Trata-se de um conceito não

vulgar, portanto, filosófico. Um conceito que é, em si mesmo,

uma de-monstração sobre “aquilo que se mostra”. Segundo essa

perspectiva, “aquilo que se mostra” para o olhar fenomenológico

é, com palavras de Heidegger:

Justo o que

não se mostra diretamente e na maioria das

vezes e sim se mantém

velado frente ao que se mostra diretamente

e na maioria das vezes, mas, ao mesmo tempo, pertence

essencialmente ao que se mostra diretamente e na maioria das

vezes a ponto de constituir o seu sentido e fundamento.

(Heidegger, 1988: 66).

Então, podemos dizer precisamente que aquilo que na

maioria das vezes “não se mostra e sim se mantém velado...”

é o único “fenômeno” que interessa à investigação fenomenológica.

Trata-se, para Husserl, do “retorno à consciência”; retorno que

é uma determinação do sentido do

ser-do-homem enquanto ser-nomundo.

No caso, o problema do retorno à consciência encontra

expressão suficientemente clara no modo como a mesma é

compreendida pela fenomenologia, a saber:

a consciência é sempre

consciência de alguma coisa.

 

Em outras palavras, segundo esta

máxima fenomenológica, não existe uma consciência

em si,

portanto, um

ser em si, pois a consciência só se apreende como

“relação”, isto é, ela existe enquanto relação de eventos vivos

e concatenados

: a consciência é sempre consciência de um ser-nomundo,

portanto, um “existencial concreto”.

Ideação,

 

 

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Assim, quando a fenomenologia de Husserl propõe o

“retorno à consciência”, de modo algum devemos compreender

tratar-se de uma espécie de

consciência em si. Muito pelo contrário,

longe desta abstração ingênua, este “retorno” significa

investigar o próprio acontecimento da consciência, segundo o

“aparecer do ser das coisas mesmas”, isto é, segundo o modo

como os objetos “aparecem” na nossa percepção, compreensão

e entendimento.

Como enfatizava Husserl, definindo o sentido do conhecimento

fenomenológico:

O conhecimento é, pois, apenas conhecimento

humano

 

 

, ligado às formas intelectuais humanas, incapaz

de atingir a natureza das próprias coisas, as coisas em si

 

.

(Husserl, 1990: 44)

De modo análogo, a consciência é apenas

consciência humana,

isto é, um

modo de ser-no-mundo, portanto, um existir fenomenal.

Entretanto, a consciência consiste justamente em ser

aquilo que

transcende e, como tal, não se deve confundi-la com

os

entes em estado natural. A consciência, no caso, não é mais

aquela figura associada ao “sujeito transcendental” de Kant, e

sim muito mais o próprio ser-do-homem-no-mundo, o que descortina

uma perspectiva completamente “nova” para a filosofia transcendental.

No caso, o transcendental permanece sendo a capacidade de

“descrever” a própria

estrutura do fenômeno, isto é, a demonstração

fenomenológica do “fenômeno”. E este “fenômeno”

tem a ver, em primeira instância, com o ser-do-homem. E

sendo para a fenomenologia o ser-do-homem o seu próprio

objeto de investigação, inevitavelmente o interesse fenomenológico

tem a ver com a “consciência filosófica”, a “consciência crítica”.

Essa “consciência crítica” é, entretanto, uma sofisticada

construção da inteligência humana.

Para que se evite ambigüidade nessa definição de “consciência”,

a nossa última afirmação intenciona apenas enfatizar

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

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que, para a fenomenologia, a consciência é compreendida como

o próprio ser-do-homem-no-mundo, sendo, portanto, necessário

se esclarecer a essencial diferença entre “consciência natural

(naturalmente ingênua) e “consciência filosófica” (construtivamente

crítica). No caso, no âmbito da análise fenomenológica

o que importa é o “descobrimento” dialógico da própria

estrutura

do fenômeno humano

 

, o que também significa “saber

inventar” e “saber decidir” o próprio modo de acesso ao

ser das

coisas mesmas

 

.

Trata-se, consequentemente, de compreender a fenomenologia

transcendental como filosofia crítica para a reorientação (restauração)

do sentido do ser-do-homem-no-mundo. Como tal, a

sua tarefa é também tomar distância das ciências naturais e

instituir as possibilidades e os contornos do

conhecimento

propriamente humano,

 

conhecimento radicalmente transcendental,

posto que funda as suas raízes no próprio ser capaz de entendimento:

o ser-no-mundo,

o homem e sua humanidade ou

desumanidade.

Para que se possa melhor compreender a intenção fenomenológica

de Husserl de constituir um método rigoroso de acesso ao “ser

das próprias coisas”, onde, então, se pode compreender de uma

maneira menos ingênua e deslocada a alçada gnosiológica da

sua

fenomenologia transcendental, inscrevendo-se na perspectiva

do desenvolvimento das “ciências do espírito”, transcreveremos,

a seguir, algumas passagens muito elucidativas que, uma

vez recolhidas na devida conta, podem abrir amplas perspectivas

de acesso fenomenológico ao “ser das coisas” — os fenômenos

de uma fenomenologia genética (construtiva)

Só, pois, a reflexão gnosiológica origina a separação de

ciência natural e filosófica. Unicamente se torna patente que as

ciências naturais do ser não são ciências definitivas do ser. É

necessário uma ciência do ente em sentido absoluto. Esta

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

Dante Augusto Galeffi 29

ciência, que chamamos

metafísica, brota de uma «crítica» do

conhecimento natural nas ciências singulares com base na intelecção,

adquirida na crítica geral do conhecimento, da essência e da

objetividade do conhecimento segundo as suas diferentes configurações

fundamentais, e com base na intelecção do sentido

das diversas correlações fundamentais entre conhecimento e

objetividade do conhecimento.

Se abstrairmos das metas metafísicas da crítica do conhecimento,

atendo-nos apenas à sua tarefa de

elucidar a essência do

conhecimento e da objetividade cognitiva

 

, ela é então fenomenologia do

conhecimento e da objetividade cognitiva

 

e constitui o fragmento

primeiro e básico da fenomenologia em geral.

‘Fenomenologia’ — designa uma ciência, uma conexão de

disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e acima de tudo,

‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual:

a atitude intelectual

 

especificamente filosófica, o método especificamente

filosófico

 

. (Husserl, 1990: 46)

Tomando distância de uma “esfera natural de investigação”,

Husserl compreende o método fenomenológico como

radicalmente diverso do método das ciências naturais. Com

isso, ele apresenta um projeto de construção filosófica que

declara independência em relação ao modelo gnosiológico constituído

em base às ciências exatas (matemática, geometria,

física, etc.). Trata-se, claramente, de uma abertura de possibilidades

que se apresenta apropriada ao conhecimento humano,

na perspectiva da sua

formatividade e pela superação de suas

“realidades já configuradas”.

Desse modo, por radicar-se no próprio ser-do-homem-nomundo,

o conhecimento filosófico é o único capaz de realizar

uma crítica das ciências da natureza, isto é, uma compreensão

apurada e “absoluta” dos limites e determinações de todas as

Ideação,

 

 

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possíveis ciências particulares. Portanto, o papel da filosofia

seria precisamente o de propiciar ao homem o conhecimento de

sua essência, enquanto existe, instituindo, assim, uma ciência

dos fenômenos que dizem respeito ao ser-no-mundo, o ser-dohomem

na história do mundo. Como afirma Husserl:

Na esfera natural da investigação, uma ciência pode, sem

mais, edificar-se sobre outra e uma pode servir à outra de

modelo metódico, se bem que só em certa medida, determinada

e definida pela natureza do respectivo campo de investigação.

A filosofia, porém, encontra-se numa dimensão completamente nova

 

.

Precisa de

pontos de partida inteiramente novos e de um método

totalmente novo, que a distingue por princípio de toda ciência

«natural». (Husserl, 1990: 47)

A filosofia, repito, situa-se, perante todo o conhecimento

natural, numa

dimensão nova, e a esta nova dimensão, por mais

que tenha — como já transparece no modo figurativo do falar

— conexões essenciais com as antigas dimensões, corresponde

um

método novo — novo desde o seu fundamento —, que se

contrapõe ao «natural». Quem isto negar nada compreendeu do

genuíno estrato de problemas da crítica do conhecimento e, por

conseguinte, também não entendeu o que a filosofia realmente

quer e deve ser, nem o que lhe confere a especificidade e a sua

própria justificação, perante todo o conhecimento e a ciência

naturais. (Husserl, 1990: 49)

Portanto, segundo a clareza abissal de Husserl, o conhecimento

humano não é da mesma ordem do mundo natural. Neste

sentido, somente uma investigação dos modos de ser e das

estruturas em que se dá o conhecimento permite a construção

de uma ciência dos fenômenos, no qual o homem é o único

sentido essencial. Neste caso, logra-se fazer filosofia, e só deste

modo é possível se constituir uma

ciência da essência do

conhecimento

 

. Ao que tudo indica, esta parece ser a direção

Ideação,

 

 

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Dante Augusto Galeffi 31

em que a fenomenologia transcendental de Husserl apresentase

inequívoca, cabendo apenas verificar em que medida esta

posição nos toca e é capaz de fazer-nos pensar no nosso próprio

ser-no-mundo em uma perspectiva genuinamente filosófica —

problemática.

De alguma forma, acabamos de “responder” provisoriamente

a pergunta-guia do nosso exercício elucidativo. Desde o

início perguntávamos pela fenomenologia. Agora, de algum

modo, configurou-se um

novo horizonte compreensivo para a

coisa fenomenológica

 

. E, pelo menos, essa nova configuração se

compreende como

método e como atitude intelectual: a

atitude especificamente filosófica, a filosofia como método

de elucidação do próprio ser que é o homem-no-mundo.

Como modo de finalizar esta consideração provisória sobre

a fenomenologia, encontramos ampla ressonância em algumas

passagens de Heidegger, aqui evocadas, com o específico intuito

de

deixar e fazer aparecer o sentido mais radical e ainda não

descoberto da

atitude filosófica genuína, o sentido fenomenológico

do ser-no-mundo, o ser-do-homem:

A fenomenologia é a via de acesso e o modo de verificação

para se determinar o que deve constituir tema da ontologia.

A

ontologia só é possível como fenomenologia

 

. O conceito fenomenológico

de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o

seu sentido, suas modificações e derivados. Pois, o mostrar-se

não é um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação.

O ser dos entes nunca pode ser uma coisa “atrás” da qual

esteja outra coisa “que não se manifesta”.

“Atrás” dos fenômenos da fenomenologia não há absolutamente

nada, o que acontece é que aquilo que deve tornar-se

fenômeno pode-se velar. A fenomenologia é necessária justamente

porque, de início e na maioria das vezes, os fenômenos

Ideação,

 

 

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32 Dante Augusto Galeffi

não

 

se dão. O conceito oposto de “fenômeno” é o conceito de

encobrimento.

[...] O ser é o transcendens

 

pura e simplesmente. A transcendência

do ser da pre-sença (

Da-sein) é privilegiada porque nela reside

a possibilidade e a necessidade da

individuação mais radical.

Toda e qualquer abertura do ser enquanto transcendens é conhecimento

transcendental. A verdade fenomenológica (abertura do

ser) é veritas transcendentalis.

[...]

 

As explicitações do conceito preliminar de fenomenologia

de-monstram que o que ela possui de essencial não é ser uma

“corrente” filosófica

real. Mais elevada do que a realidade está

a

possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente

de se apreendê-la como possibilidade. (Heidegger,

1988: 66-70)

Como se pode ver, a nossa intenção de elucidação fenomenológica

alcançou um ponto limite, o que nos permite ter a certeza de

que o

método fenomenológico confunde-se com a própria

filosofia. E esta filosofia deve ser capaz de libertar o ser-dohomem-

no-mundo do julgo da sua imbecilização deliberada ou

da tirania individual e coletiva, mas isso sempre e a partir de

uma decisão radical: o querer-ser livre e responsável pelo serno-

mundo na abrangência da construção da humanidade humana.

Como assinalou Heidegger, “

a verdadeira fenomenologia —

compreendida como

abertura do ser é verdade transcendental”,

o que significa dizer que ela é uma

ciência da essência do

conhecimento,

 

como já havíamos enfatizado no início deste

exercício. Neste sentido, pode-se compreendê-la de fato como

uma

nova possibilidade capaz de iluminar a abertura do projeto

do ser-do-homem-no-mundo na abrangência do

processo de

suas efetividades vividas. E sendo apenas

uma possibilidade, a

fenomenologia libera-se do intelectualismo monológico de um

Ideação,

 

 

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Dante Augusto Galeffi 33

“sujeito do conhecimento” dado para sempre, instaurando, em

seu lugar, o próprio

acontecimento-apropriação do que sempre

permanece aberto às

possibilidades: o próprio ser-do-homem, enquanto

lançado na temporalidade do mundo; mundo que não cessa de

tornar-se fenômeno; mundo em ebulição permanente

 

.

Segundo esta abertura do ser-do-homem-no-mundo, a

fenomenologia lança luzes sobre o

projeto histórico da humanidade

do homem, o que abre a possibilidade de reconfiguração do

seu estatuto de liberdade.

A construção humana autônoma, então, passa a ser uma

questão fenomenológica, isto é, uma questão de compreensão

prévia do próprio ser-no-mundo. E é esta “compreensão” que

descortina as possibilidades do ser-do-homem poder assumir as

responsabilidades da sua própria história. Contudo, é também

preciso saber de antemão que o futuro é sempre um existencial

presente-passado, assim como ter bem claro que o

mundo vivido

é a única morada a ser plasmada pelo ser-do-homem. E para o

mundo vivido

 

só o “inesperado” é bem vindo, pois se o ser-dohomem

não fosse capaz de

transcendência tudo estaria fadado a

ser uma mera e monótona “repetição do igual”, onde, evidentemente,

não poder-se-ia falar em “transformação social do

mundo”, como algo além de qualquer programação previsível,

o que obrigatoriamente nos jogaria para dentro de um conformismo

insano e um determinismo incompatível com a abertura

de possibilidades da própria grandeza hominal.

É nessa perspectiva de

projeto que a fenomenologia se

mostra na sua mais concreta força, o que permite, enfim, concluir

que não deveríamos tratá-la como algo do passado — como

mais um dos múltiplos movimentos do pensamento construtivo

do homem na história —, pois se assim agíssemos estaríamos

abrindo mão do usufruto das nossas reais possibilidades de

construção de uma

cultura pessoal amplamente inserida no seu meio

social

 

, o que implicaria na aceitação da condição obtusa de seres

Ideação,

 

 

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impotentes, incapazes de tomar decisões radicais e de viver em

plenitude.

O caso é que a fenomenologia é um método para o próprio

esclarecimento do ser humano na história. E isto significa que

ela, além de ter que levar em conta o já instituído de forma

ampla e criteriosa, deve também saber investigar as condições

de possibilidade do ser que, independente das vontades alheias,

permanece sendo o instituinte de todo o vir-a-ser, isto é, o

sentido e a finalidade permanentemente presentes na própria

ausência de acabamento do ser-do-homem-no-mundo.

Na condição de abertura de possibilidades para a investigação

rigorosa do ser-do-homem, a fenomenologia permanece

sendo apenas uma possibilidade. E isso enquanto se apresente

interrogante, ou melhor,

metassistêmica, não pretendendo, portanto,

ensinar a “verdade” acabada, e muito menos as leis

perenes do ser-no-mundo, mas apenas tornar-se o meio descritivo

do acontecimento do sentido

fenomeno-lógico.

Nessa perspectiva, a fenomenologia permanece sendo um

exercício transcendental

 

, o que inevitavelmente pressupõe e exige

uma Ética da mais ampla envergadura, requisitando de quem se

põe a investigar o homem uma efetiva atitude radical diante do

próprio ser-consciente do

eu-outro-mundo. A responsabilidade

diante de um projeto de tamanha ordem é a única condição de

possibilidade para que se possa fazer do homem um ser dotado

de

liberdade inventiva e partilhada.

De qualquer modo, enquanto

projeto, a fenomenologia torna-

se um concreto e eficaz instrumento de ação para a transformação

do

processo humano, o que apenas enfatiza a grande

possibilidade que se descortina quando assumimos a nossa

própria condição de liberdade partilhada. Isso afirma a nossa

peculiar transcendência, o que na verdade apenas confirma

nossa condição histórica de seres mundanos. Tudo o mais só

Ideação,

 

 

Feira de Santana, n.5, p.13-36, jan./jun. 2000.

Dante Augusto Galeffi 35

depende da capacidade de compreender a transcendência como

o próprio modo do ser-do-homem.

Somente o ser humano pode decidir de que forma pretende

estar-no-mundo, sobretudo quando aprender a se dar conta de

que ele está aberto no mundo, e de que o “mundo” são todas

as possibilidades. E é diante delas que os seres humanos são ou

deixam de ser, se tornam e se transformam, exercem seus sonhos

e desejos, vivem ou desistem de viver, se fazem dignos ou

simplesmente rastejam como animais invertebrados.

Entretanto, a decisão por uma dignidade de ser é coisa que

só se pode decidir diante da liberdade do ser. E o ser parece

não tolerar a insensatez e a indignidade, a bestificação e a

fragmentação alienante. Este ser é perpetuamente algo que só

se dá além das coisas. Mas as coisas são para este ser a sua única

morada, a sua existência: saber habitá-las é sempre uma questão

de ser, é ser-no-mundo uma jocosa espera do “inesperado”. E

o inesperado-esperado é sempre aquilo que nos mantém em

estado de dignidade permanente.

Procurando uma

imagem para encerrar essa nossa fala sempre

provisória, apresentou-se um

dizer, ao modo de Heráclito,

que muito bem pode exprimir o sentido de perplexidade

dialógica

aberto nesta compreensão fenomenológica: —

Pois, quando dormimos,

não dormimos, e quando estamos acordados, não estamos acordados;

mas quando dormimos, dormimos, e quando estamos acordados,

estamos acordados.

De qualquer modo, resta sempre a cada um decidir se quer

ou não pensar com liberdade e altivez, superando as antinomias

do ser e do aparecer, da essência e da aparência — continuar

no caminho interrogante:

meditação infinita.

Ideação,

 

 

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